5 Lithografias, 1999

Leon Kossovitch

Nas litografias deste álbum, puramente receptiva, a pedra não opõe resistência aos ataques que contra ela desfere Cabral: o pincel e a estopa, diversamente pressionados e deslocados pela mão, lançam, intensivos, intensidades, que o impressor reintensifica para mais ou menos, reinterpretando a interpretação, assim, executando a execução que lhe chega, coagulada, às mãos. Têm mão os dois, cada qual à sua maneira: sua ação concertada não implica inscrição, enquanto ferimento aberto na pedra, pois tudo é, aqui, lisa escritura, que ainda se alisa como reescritura no papel de impressão, que, por sua vez, algum contemplativo analisa porque reescreve a didascália do impressor, detidamente. Nessas escrituras, o coágulo da ação velocíssima de Cabral não requer, todavia, rapidez das execuções subsequentes, porquanto só o intervalo da primeira intervenção físico-corpóreas, mas gesto e olhar como atos libidinizados. Das noções, o tempo, como tensão entre momento e intervalo, exclui o espaço como neutro continente e o corpo como executor mecânico, pois, relativamente à ação associado ao tempo tensivo, esses perdem-na em tridimensionalidade trivial e, por não excederem peso, medida, número não a interpretam. Por isso, para lá de suas respectivas diferenças conceituais, gesto e olhar circulam fora da dimensão escalar e da encarnação corpórea: neste álbum, a mão é gesta de gesto, não extremidade corporal, enquanto o olho é do olhar, pulsátil pulmão.

Tendendo o intervalo ao ponto e o ponto ao intervalo, o intensivo da concentração e da expansão simultâneas impõem-se ao tempo. Entretanto, gesto e olhar não estão no mesmo plano: aquele, como ação na pedra, não é o resultado de alguma propriedade visual desse, nem, inversamente, esse se situa na ponta daquele em guisa de conclusão de ataque. Intensivo, o intervalo tendente ao ponto não tem apagados os seus extremos, de sorte que a ação, sendo embora brevíssima, pode incluir relances, como esgares e vocalizações, a serem considerados com justeza aqui, como estranhos, dada a abreviatura, a qualquer tentativa de emolduramento da ação, em que a pantomina e o bel canto sobressaiam. Neste álbum, com o intensivo do intervalo que impede a sai transformação em continente de ação, caretas e entonações ficam no plano do actio dos oradores, como adjuvantes da intervenção. Numa apro-ximação analítica, a careta pode classificar-se entre as atuações, ao passo que a voz, como pulsional, pode ser tida interpelante; mesmo aqui, contudo, não se lhes atribui efeito na ação, ficando ambos relegados à secundariedade de restos dos excessos intensivos, relativamente à direção da brevidade. Em tempo pulsátil, enquanto o gesto interpreta a obra, o olhar é, nesta, o elemento pulsional, a ser distinguido do que chega ao impressor, coagulado. Pois o que sai de Cabral, está a um tempo trajado e tarjado de preto; não havendo nada por baixo, o negro é o traço simples que elimina a multiplicidade das cores, o mínimo que dispensa molduras e árias: o teatro artístico é abolido como descabelamento quando a ação marcial prevalece em gesto preciso.

A escritura sendo lisa e o tempo, tenso, a pulsão se distingue como descarga sem desvio ou embaraço. Como fonte, alvo, objeto e pressão, seus subconceitos, a pulsão emerge na valorização do último destes: descarga livre, explicita-se ela como passagem, com velocidade de raio, da energia potencial, pura diferença, à cinética, na qual devido à celeridade do ir e vir, os extremos tendem à indiferença. Por isso, no que concerne à pressão, o ir e tornar entre fonte e objeto, não implicam, no plano da estática, piezometria de perda na pedra de Cabral e, no da dinâmica, turbulência ou estagnação no processo primário na mesma pedra. Se a visão pode ser buscada, as limitações intensivas do intervalo só a evidenciam operante uma vez este superado, portanto, uma vez concluído o processo. Consequentemente, neste álbum, não se exerce visão prospectiva que ou antecipa o gesto enquanto o prepara ou com ele se alterna em ação auto-explícita, esta quando ambos giram, céleres, uns binário; esta desativada visão enquanto enlaçada a conceitos e preceitos que predeterminem a execução da passagem direta da pulsão; cerra-se visão enquanto formativa, contemporizadora, inseparável das precedentes como desconfiança relativamente à ação direta, logo, a tudo o que, afirmativo, participe no pulsional. Alheia a incertezas, arrependimentos, negaças – negações reativas –, a ação direta impede que acedam ao processo passividades, principalmente niilistas, o que não afeta o exercício ativíssimo da critica e da própria visualidade, mas isso adiante, terminada a ação na pedra.

Em intervalo que se concentra em ponto ou ponto que se expande como intervalo, há a pulsão, aqui, olhar que não vê, mas também gesto, delimites previamente inassignáveis, muito embora com início e fim. O gesto não conclui movimento que se conceba como natureza, nem está semantizado por antecipação: todo ele significância pois definidor do intervalo pontual, o gesto se desencadeia, sem crivos, sobre a pedra. Assim, traz o olhar, que nada vê porque ataca, seu negror, de fora do tempo, no tempo tensivo do gesto. Sempre a via brevíssima: o negrume cabraliano apossa-se da pedra no ataque simultâneo do gesto que se desfere contra a pedra e do olhar que também se desfere, mas da pedra, contra Cabral. Alojado na pedra, o olhar espreita o gesto como negra luz no intervalo da ação, ou ainda, como fascínio que acelera o mesmo gesto, atacando-o em tempo intenso. A queda do desejo dá-se após o intervalo reduzido a ponto de acumulação, como tal, amplificado como intervalo, intensivamente. Neste sentido, enquanto o gesto abre o intervalo, o olhar o apressa com negrume, levando-o ao outro extremo. O olhar será visto depois de tudo acabado mas, para tal, terá saído da pedra e, sumido, seu vestígio será visto no vestígio da ação, em filigrana, na litografia, encarando o espectador, tanto mais facilmente, quanto mais aferradamente este perseguir figurações.

A ação direta, pura afirmação na ausência de pathos prescrito, de atuação emoldurante ou de entonação colorante fez valer o processo. Até na primeira litografia do álbum, a única a não brotar de um lance só, não há restrições compositivas. Sequencial, a ação desencadeia-se sobre áreas crescentemente diminuídas, mas tal estreitamento não se constitui como predeterminação do processo, não estando prescritas normas que o dirijam.

Consequência disso é não perfazerem um todo as partes sucessivamente ocupadas, excluindo a justaposição a composição, ou ainda, o agregado como resultado a totalidade como princípio. Na primeira litografia do álbum, o agregado tem o sentido direto das demais, cuja simplicidade nada pressupõe, processo claro em muitos desenhos, pinturas e objetos de Cabral. Exemplo de valorização do direto é a quinta litografia: tendo em algum momento considerado pertinente imprimir a sua pedra com uma outra, Cabral acaba desistindo do intento por entender que a sobreposição refreia o lance. A execução direta não significa preferência por pedra imaculada: defeituosa, a trabalhada em todas as litografias do álbum mostra nos bancos gerados dos cavos não atingidos pela tinta que o direto despreza a plenitude gráfica em nome da ação inteira; o uso de suporte parcialmente deteriorado não está em conflito com a lisura da execução, coincidindo, no direto, a bruteza do repente e a liberdade da descarga.

Em execução não estudada, o múltiplo, como prescrição do diverso, não tem acolhida, ficando, com isso, excluídos preceitos do ornamento, como a copiosidade e a variedade retórico-poéticos, matriciais, como preceptivas antigas, relativamente a qualquer estilização, geométrica, figurativa, abstrata, etc. Em Cabral, tanto no simples quanto no agregado a descarga direta da pulsão situa, contudo, o estilo no campo do impensado. Tal conceito intercepta os campos wölffliniano e morelliano: enquanto naquele o estilo se constitui como a priori histórico da apresentação, seguindo impensadamente as obras os sulcos categoriais purovisibilistas que as periodizam, nesse ele se produz como rastro da ação que se repete em um mesmo pormenor à revelia do artista. Os dois impensados, o pormenor que trai o artista como cacoete e lapso e o dos conceitos que ele ignora porque o ultrapassam, operam a partir da identidade e em vista dela, um datando e o outro desmascarando. No álbum de Cabral, porém, o estilo não pressupõe a identidade, nada unificando os coágulos na pedra: ilimitado, o coágulo escapa à historia e ao lapso que classificam os impensados wölfliniano e morelliano. Enfatizando o direto, o estilo articula-se com o pulsional; neste sentido, ele é estigma, aquilo que, para Cabral, surge a um tempo como o inopinado e o reconhecido na sua ação. Descontínuo, o estilo das litografias passa ao largo da estilização, entendida aqui em chave francasteliana como a reposição contínua de um protótipo ou, em outros termos, como produção submetida à convergência de sequências. No estilo de Cabral, só o direto operando, não se constitui qualquer estilema, que se define em conjunto fechado; pertencendo a coágulo a conjunto aberto, a inclusividade considera a divergência, inoperante lei analógica.

Em tal conjunto, o surgente se inclui como estigma e é, assim, estilo e fado: uma vez reconhecido o coágulo como pertencente a um conjunto, o efeito é o da inevitabilidade de sua aparição; neste sentido, o conjunto é extensível e, ausente norma de convergência, pode entender-se como o de compossíveis. Não é paradoxal que compossibilidade e divergência possam conceber-se simultaneamente, pois, em conjunto aberto como o exemplificado pelo álbum de Cabral, a atribuição do elemento ao conjunto não pressupõe idealidade por se produzir depois; por isso, a insistência no novo como ruptura e no estilema como reposição implica o fechamento do conjunto e o pré-estabelecimento do ato de reconhecer. Em conjunto aberto, o novo é o que sidera, estigma que suspende expectativas: puro signo, demonstra que a atribuição do elemento ao conjunto se fez sem que convergência prévia estivesse em ação. Sendo os compossíveis estabelecidos depois de efetuados, o repertório é o conjunto aberto da produção: por um lado, tal repertório não condiciona novos surgentes, não se capturando os elementos por qualquer identidade prévia, e, por outro, explicita a irrepressibilidade da pulsão, desatada dela como base de sequências convergentes.

Entretanto, convergência e divergência podem aplicar-se indistintamente ao conjunto aberto na atribuição do coágulo ao re-pertório; pode ocorrer, até, que um divergente reconhecido se torne convergente como primeiro termo de sucessões recortáveis como subconjuntos fechados, não implicando isso que estes sejam necessitantes numa atribuição que só se faz depois.

A combinatória reúne em subconjuntos, sendo as sequências convergentes efeitos posteriores; ela também explicita o estilo enquanto aplicado à pulsão diretamente descarregada. O agregado da primeira litografia exemplifica-o porque valoriza, na justaposição, a descarga direta. Enquanto o compossível se diz do re-pertório produzido sem seleção prévia, o possível é o que emancipa a pulsão de normas pois se desvincula de toda presciência que o escolha e de toda vontade que o atualize, nada estando escrito de antemão: a mão que escreve na pedra é cruzada pelo olhar conflitivamente, descarga que tem um possível e não em outro o seu ótimo, metaforicamente, a via brevíssima. Nem natural, nem arbitrária, a pulsão se descarrega com tal gesto: atualiza-se, nele, algum possível, que só depois se faz reconhecer como compossível do conjunto, assim, como coágulo do estilo. A posterioridade do repertório faz conhecer os possíveis, que permaneceriam desco-nhecidos não fosse a liberdade da descarga. Por onde, a fatalidade como efeito, suspensivo ou não, do coágulo sobre o observador, a significar que o reconhecimento se fez na atribuição dele ao reper-tório: os efetuados deste iluminam, como compossíveis lógicos, a constelação dos possíveis; discretamente atualizados, pois surgem um depois do outro, os possíveis são também compossíveis, abstração feita da mesma atualização, que não é sistêmica.

O estilo é, assim, o estigma que, atravessando os dois conjuntos, explicita que são o mesmo, para além das diferenças: o dos possíveis é tão aberto quanto o outro, com a diferença de que só se faz conhecer no repertório; nisso, o repertório dos efetuados vai rastreando o conjunto dos possíveis, que, por sua vez, são os da descarga. Ambos os conjuntos coincidindo, com a diferença do conhecimento que um tem do outro e da efetuação de um pelo outro, a atribuição, ou reconhecimento, implica o estilo. O “não sei o quê” leibniziano significa o assentimento ou a recusa, sem que razão exaustiva seja aduzida no ato atributivo. Mas tal “não sei o quê” incide no coágulo, o que define o repertório como visual; todavia, o assentimento como ato atributivo que inclui o coágulo no repertório sem razão completa se desloca da visualidade que o sustém. Pois, investido pulsionalmente, o coágulo dissolve-se: o visual apaga-se no olhar e, nada, sendo apresentado, o estilo ope-ra, como conceito, além dos dois conjuntos, como a própria pulsão. Como esta só se descarrega com os possíveis, estes, ótimos discretos, evidenciam-se combinatórios, seletivamente: os elementos da combinatória, antecedendo os coágulos relativamente à efetuação, constituem-se como unidades; mas as diferenças recíprocas das unidades não se assignam com critérios da exterioridade, como comparações visuais ou valorizações presentificantes, pois, combinatoriamente, flutuam. São, por isso, unidades em si mesmas diferenciadas, não entrando o múltiplo como diverso, por exemplo, composição, figura, ornamento, em seu conceito: as litografias explicitam, no coágulo, a unidade diferencial, pela qual a pulsão pode descarregar-se, não fracionada, mas inteira, diretamente. Como lances indivisos em gestos contínuos, acumulados, intermitentes, rompidos, as unidades diferenciais são intensidades puras.

Sendo a distinção de coágulo e unidade diferencial a de repertório atualizado e conjunto de possíveis, são estes que permitem a descarga, enquanto aquele, além dos efetuados, acolhe, como aberto, os futuros, que, assim, concebem-se como futuros contingentes da visualidade. Tal contingência afeta os efetuados, sem recurso, todavia, à ciência e à vontade no que concerne ao surgimento. O estilo, enquanto ligado ao repertório, só se rege por convergência e divergência como conjunto atual e futurível; enquanto associado aos possíveis, que, depois, no visual se explicitam compossíveis lógicos, o estilo é o que, como constelação, efetua a descarga litográfica. Explicitando o visual, o estilo evidencia-se na harmonia das unidades diferenciais, cuja compossibilidade não implica, como se viu, sua atualização simultânea: enquanto o um a um se refere à atualização, os compossíveis qualificam as unidades diferencias de harmônicas. Nessa articulação, discrimina-se o juízo: o assentimento ou a recusa em litografias sem retomadas ou retoques, incidindo na adequação do coágulo e do repertório, pressupõem, todavia, outra modalidade de juízo, o da conveniência da unidade diferencial e da pulsão como olhar. O coágulo exclui-se do repertório ou nele se inclui, não porque diverge ou converge estilisticamente, mas porque a pulsão e a unidade não o atualizam como adequado; por isso, as interfe-rências, acidentais ou outras, no processo devem ser conside-radas, pois poderiam desviar ou até romper a descarga. Neste sentido, o critério da pulsão é a pulsão mesma, o direto: só as execuções sem fricção ou desvio se mantêm, de sorte que toda correção é interferência inadmissível.

O direto leva diretamente ao álbum do Cabral: neste, a queda do olhar se configura, enquanto se ergue a visão. Atalha-se nestas litografias uma estética que enfrenta uma ação sem pressu-postos e cuja agressividade, centrada no olhar, apressa o gesto tendido na execução. A bruteza gráfica é idêntica à lisura da descarga, sem quedas, sem sublimações, durante o processo.

No conflito do gesto e do olhar, este aquele assombra da pedra, a qual se traja de preto e se retarja do mesmo preto, nada havendo por baixo ou por cima na intensificação que opera como signo, como signo de si, assim, estilo como estigma. Em tal negror não se busque melancolia, menos ainda, luto: as litografias não se alinham com depressões e, se algum goticismo redivivo aí se reconhece é porque também ele tem nojo da corrupção e cretinização ranfástidas. Mas isso implica o juízo, que só aflora uma vez concluída a ação a, não menos abrupta que a gótica, mas mais precisa, pode sobrevir a crítica, de esquerda, ativamente niilista ou outra. A mão dupla do juízo, da estética e da ética nele imbricadas, impõe-se principalmente na defesa do inconsciente como processo. Desvestido das cores dos intermezzi divertidos, que fazem suportar o processo, o álbum propõe a discussão da historicidade, que só se conhece depois, a saber, no próprio álbum. Aqui, os juízos estéticos que, antes de fechado o álbum, sufragam algumas litografias em detrimento de outras, que naufragam, abrem-se imediatamente para os juízos éticos: a historicidade, que não pertence ao olhar, assim, à pulsão, mas ao gesto, faz deste gesto, atos, em que se defende, com o inconsciente, toda a gama de posições de que a acomodação e o cinismo estão expulsos por um olhar que, agressivo no processo, é crítica depois.